segunda-feira, 31 de maio de 2010
manhãs tristes
as manhãs são tristes.
aprendi-o com os homens
e entendê-lo levou tempo.
durante meses choveu nas minhas mãos
e agora
que o sol dispara cedilhas de fogo
ao som de rosas surdas
queimei a sombra onde queria abrigar a tua pele...
- raios!
durante anos escrevi livros redondos
onde os poemas eram bocas amarelas
com o hálito do bolor
enterrados em castiçais sem cera
logo agora
que te queria escrever
que és tão minha como as más recordações...
- bolas!
as manhãs são tristes
como os círculos de um peixe dourado
no sono do aquário.
morre no abandono dos rios
que deixaram silenciar a voz
nas cordas do violino.
e agora?
jé nem os pássaros cantam o peito da terra
(atravessaram o inverno para outras sinfonias).
e agora?
aprendi o silêncio com os homens
(deles apenas quero a loucura do sangue).
sexta-feira, 28 de maio de 2010
raiz queimada
terça-feira, 25 de maio de 2010
neogénesis
(já não são só as veias
e carregam o diabo no corpo.
domingo, 23 de maio de 2010
manifesto
nesse dia atravessei o inferno
com as mãos orvalhadas.
adivinhei lamúrias
receei perguntas
fuji das respostas.
oh, boca, voz
bailado sem corpo
na respiração amarela do medo
onde estás?
ambos conhecíamos a origem do sangue
(mel e jasmim, lembras-te?)
mas os deuses do silêncio
adormeceram em olimpos de sal como figuras
com favos nos lábios
e pétalas nos dedos.
por isso
deixei de acreditar nas bíblias dos homens
e o corão é os olhares escondidos em espelhos.
são homens a roer bagos de uva
são homens a calcar páginas brancas
são homens a roubar o círculo de fogo
são homens a procurar o pecado que engrandece
(reparaste como tudo se transforma
nas roldanas do silêncio?).
é preciso matar as palavras
afogá-las no seu veneno
fuzilá-las com a sua pólvora
apunhalá-las no seu cristal
apagá-las no seu rasto
riscá-las do poema
adormecê-las na sua insónia
trucidá-las no seu cinismo.
é preciso desinventar as palavras
para sabermos quando é a hora de morrer.
sexta-feira, 21 de maio de 2010
Ler: do Mito à Realidade
Os portugueses não lêem; Os livros são caros; Os jovens não gostam de ler… são frases (mais ou menos) feitas em que vamos tropeçando a toda a hora. E, se é verdade que, dados de estudos internacionais sugerem que, comparativamente com cidadãos de alguns países (sobretudo da Europa do norte), os portugueses apresentam défice de frequência e competência de leitura, não o será menos que, no terreno, haja sensibilidades que nos levem a adoptar uma postura de menor cinzentismo.
O exemplo maior desta realidade é a II edição da Semana da Leitura que o Grupo Disciplinar de Língua Portuguesa da minha escola acaba de dinamizar.
E tudo começou com a monção da poesia no espaço exterior da escola. Celebrando a Primavera e o final das chuvas que fustigaram os ossos e os sorrisos, em Abril choveram não águas, mas poemas mil; nas árvores, nas portas, nas janelas, nos bancos de jardim, nas papeleiras… foram afixados poemas de autores nacionais e estrangeiros, sagrados, consagrados e experimentais, numa exaltação viva do que de mais sensível a poesia tem para oferecer. E ninguém se encharcou; ninguém vociferou aos deuses.
Começámos com o ilustrador e caricaturista Onofre Varela que leu parte da obra “O Sobe Montanhas”, ilustrada por si, e que conversou com os alunos sobre a sua actividade enquanto ilustrador. Terminou oferecendo-lhes desenhos muito variados, elaborados a partir de um risco feito por eles.
O evento terminou com uma sentida homenagem à poesia, num sarau intimista que viria a juntar alunos, familiares e professores.
Afinal, mesmo que os arautos da desgraça apregoem a morte do livro e da leitura, são iniciativas como esta que nos levam a acreditar que vale a pena porfiar. Até porque o livro não morreu nem está, sequer, moribundo; o livro está vivo e vive no meio de nós. Que o digam os alunos.
quarta-feira, 19 de maio de 2010
da boca
na saliva das palavras
eis como a boca inflama
nesse chicote de puro gozo
eis como a boca entumece
no orgasmo do dizer.
e contudo
fora da boca
os peixes fazem círculos
os frutos saboreiam o verão
e a água lambe o ventre das nuvens.
é verdade
não há como o esconder
mas a boca é o telhado cinzelado
pelas mãos do cio.
houve noites em que sonhei
que a boca incendiava o corpo do poema
mas à luz do dia
com os olhos abertos
o único corpo que ardeu
foi o do poeta
já sem voz
moribundo nas palavras.
inclinando-se sobre o olhar,
a boca inaugurava o silêncio.
Pedro Abrunhosa e Comité Caviar, Fazer o que ainda não Foi Feito
Sei que me vês
Quando os teus olhos me ignoram
Quando por dentro eu sei que choram
Sabes de mim
Eu sou aquele que se esconde
Sabe de ti, sem saber onde
Vamos fazer o que ainda não foi feito
Trago-te em mim
Mesmo que chova no verão
Queres dizer sim, mas dizes não
Vamos fazer o que ainda não foi feito
E eu sou mais do que te invento
Tu és um mundo com mundos por dentro
E temos tanto pra contar
Vem nesta noite
Fomos tão longe a vida toda
Somos um beijo que demora
Porque amanhã é sempre tarde demais
E eu sei que dói
Sei como foi andares tão só por essa rua
As vozes que te chamam e tu na tua
Esse teu corpo é o teu porto, é o teu jeito
Vamos fazer o que ainda não foi feito
Sabes quem sou, para onde vou
A vida é curva, não uma linha
As portas que se fecham e eu na minha
A tua sombra é o lugar onde me deito
Vamos fazer o que ainda não foi feito
E eu sou mais do que te invento
Tu és um mundo com mundos por dentro
E temos tanto pra contar
Vem nesta noite
Fomos tão longe a vida toda
Somos um beijo que demora
Porque amanhã é sempre tarde demais
Tens uma estrada
Tenho uma mão cheia de nada
Somos um todo imperfeito
Tu és inteira e eu desfeito
Vamos fazer o que ainda não foi feito
E eu sou mais do que te invento
Tu és um mundo com mundos por dentro
E temos tanto pra contar
Vem nesta noite
Fomos tão longe a vida toda
Somos um beijo que demora
Porque amanhã é sempre tarde demais
Vem nesta noite
Fomos tão longe a vida toda
Somos um beijo que demora
Porque amanhã é sempre tarde demais
Porque amanhã é sempre tarde demais
Porque amanhã é sempre tarde demais
Porque amanhã é sempre tarde demais
segunda-feira, 17 de maio de 2010
don juan
cansaste de amar pelas palavras
e as coxas dos cometas
são a única verdade
que te penetra o nome
vives a hora nos ponteiros do prazer
e o poema é a carne
onde todos os dias morre um poeta
no balanço frenético dos versos
e amanhã? que importa...
o amor serve de pasto aos vermes.
sábado, 15 de maio de 2010
da água
uma voz líquida
espreita pelas frestas do quarto.
desliza pela cal
deixando o rasto escuro
de árvores com o inverno nos dedos,
senta-se sobre a cama
escarnecendo da volúpia do corpo
vencido pelo amor sem fábula.
(há palavras que deviam ser afogadas)
ele remexe a febre
com os dedos trémulos da candeia
que toca a treva da terra:
- quem és tu? (quem sou eu?)
- que me queres? (que quero?)
- por que me persegues? (por que não me liberto?)
silêncio apodrecido
(as palavras têm prazo de validade
no bosque nocturno da tua boca)
ele fecha os olhos e adormece
o delírio vegetativo que
suspira pelo cais do regresso
a imagem repete-se...
uma voz líquida abandona o quarto
enquanto o silêncio arde no carvão do peito.
fotografia de José Figueira
quinta-feira, 13 de maio de 2010
florista
já não respira o bolor do cemitério
e deixou de plantar sonhos brancos no altar
(consta que esqueceu como tudo se faz).
as flores cobrem-lhe as mãos.
os seus ossos foram as rosas
onde abelhas em fúria semearam mel
com os olhos redondos de sal.
as flores cobrem-lhe os dedos.
a serpente lambeu-lhe as pétalas
e confundiu-lhe a chama do corpo.
as flores cobrem-lhe a boca.
a lágrima e o grito
lavam-lhe a urna
regando as sementes de magnólia
que hão-de estourar no vento
e mirrar nas raízes da memória.
as flores cobrem-lhe o corpo
e a luz extinguiu-se.
eu não vi
mas sei.
The devil wears prada, louder than thunder
terça-feira, 11 de maio de 2010
falência
deixei de fumar.
(queimei os lábios com o teu lume
não posso deixar arder os dedos...)
não te preocupes
já não bebo.
(afoguei o sorriso nas palavras
não devo confundir papéis velhos com poemas...)
não te preocupes
(sei que o não fazes)
é que para ti
o tabaco carbonizou o estio
deixando o fruto apodrecer na semente
já para mim
o vinho menstruou os sentidos
estourando as têmporas do animal louco.
deixei de procurar
morrer é muito mais que um golpe de ilusionismo
de um deus que saldou o amor.
domingo, 9 de maio de 2010
futebol sem bola
Pois, este fim-de-semana, o Benfica acaba de se sagrar campeão nacional pela 32ª vez. Foi a equipa que mais pontos somou (76 contra 71 do Braga), a que mais golos marcou, a que menos sofreu, a que teve o melhor goleador e a que mais empolgou os aficionados do futebol naquilo que o seu treinador, Jorge Jesus, considera “a nota artística”.
Tudo normal, diríamos… Mas o certo é que assim não é.
Em primeira análise, estranho que umas dezenas de adeptos do clube da minha cidade, tradicionalmente hospitaleira e cordata, à boa maneira de uma arruaça inqualificável, tenha tomado de assalto a Arcada não para festejar, mas para impedir os adeptos benfiquistas (que são milhares na capital do Minho) de festejar… socos, pedradas, impropérios e muito ódio acabou sendo estancado, apenas, pela intervenção da polícia de choque que teve, inclusive, de disparar projécteis de borracha tendo em vista a dissolução da massa em fúria.
Todavia, e numa leitura mais atenta, até sou capaz de perceber o porquê de todo este alvoroço… um treinador que, no final do jogo que tinha obrigatoriamente de ganhar (e que empatou) para, esperando pelo resultado do principal rival neste campeonato, poder saber se festejaria ou não, veio às câmaras de televisão falar de injustiça e manigâncias, num discurso incendiário, pejado de falta de fair-play e, sobretudo instigador, vivamente, das tristes cenas que todos testemunhámos; um Presidente de câmara que se comporta como presidente de clube, numa promiscuidade que favorece braguistas e lesa bracarenses; uma massa adepta que forma claques com cânticos racistas e sectaristas, onde o ódio é a arma de arremesso que a direcção do clube aproveita para fazer vingar propósitos; nenhuma destas situações pode colher a minha simpatia.
Hoje, sinto-me envergonhado… como bracarense, como adepto do futebol e como cidadão… esta não é a minha cidade… estes não são os meus concidadãos… há que saber ganhar, mas, sobretudo, que saber perder.
SIDEWAYS (2004)
E se, de repente, o vinho mais não fosse que a metáfora dos percursos de dois amigos que, na meia-idade, sentem que falharam na vida, assumindo a inexistência de projectos ou a mera existência de balões de oxigénio de consumo imediato? É justamente este o mote de Sideways, um filme de Alexander Payne (2004).
Miles é um professor de Inglês e escritor que se sente a caminhar para o ocaso da vida: passou por um divórcio penoso e o seu livro acabou por ver a publicação rejeitada pela editora, num processo que o enredou numa teia de decepção precipitando-o na depressão. Jack é um actor de televisão para quem a vida é um fruto sempre maduro que tem de ser consumido na hora, até ao caroço, numa demanda incessante pelo prazer e satisfação imediatos.
A viagem que ambos empreendem pela região vitivinícola da Califórnia é um presente de casamento que Miles proporciona a Jack e uma oportunidade para celebrarem a vida e a amizade.
De adega em adega, redescobrem os sentidos para lá da verdadeira essência de cada um: enquanto Miles sente o vinho no seu aroma, na sua textura, no seu corpo, na sua cor, Jack bebe-o de um trago só; enquanto Miles valoriza as castas frágeis, delicadas, que, se mal manipuladas, perdem todo o seu potencial, Jack procura a garrafa mais cheia ou o trago mais intenso. Não surpreende, pois, que aquele construa, ainda que a custo, uma relação com Maya, velha conhecida e também apreciadora de vinhos com quem se reencontra durante a viagem, enquanto este prefira relacionamentos rápidos e superficiais (Stephanie e Cammy), à revelia dos sentimentos que possa estar a suscitar no parceiro.
De peripécia em peripécia, o filme termina apontando dois caminhos: a viagem acabou por ser inócua para Jack (casa com a noiva como se nada do que vivera tivesse expressão); já para Miles, significou a redescoberta de si mesmo, da sua condição e daquilo por que vale a pena lutar na vida. Não é, afinal, essa a diferença entre um vinho de colheita seleccionada e um vinho corrente?
sexta-feira, 7 de maio de 2010
cor[o]ação
e é o silêncio que se estende sobre os lençóis
onde outrora depusemos rosas encarnadas.
boceja com veneno na língua
como se nada mais existisse no quarto
e todos os nomes definhassem na estreiteza do corpo.
contra a luz
árvore e flor esperam a hora de morrer
enquanto o desejo perde a boca e o palato
(o coração há já muito se perdeu
sobre as planícies lavadas pelos versos
de uma chuva que não soube molhar).
desaprendi de escrever
(talvez aprenda a morrer):
a poesia deixou de arder nos olhos
e eu já não sei roer o mel que estala nos dedos
a poesia esqueceu os rios que enxaguam o rosto
e eu desprendo as amoras dos lábios
a poesia lançou a verdade aos ataúdes
e eu já não sei como saciar a mão.
afinal, tinhas razão:
todas as palavras juntas
escrevem o mais sórdido dos silêncios.
terça-feira, 4 de maio de 2010
é como se...
a poesia rasgou o papel para poder arder no alfabeto dos teus olhos (sei que as palavras estão órfãs de voz e o silêncio gira como um baloiço em redor da cidade).
gavin rossdale, love remains the same
segunda-feira, 3 de maio de 2010
para sempre
sábado, 1 de maio de 2010
EM ABRIL, POEMAS MIL – SARAU DE POESIA
Foi justamente isso que sucedeu ontem, na Escola EB 2/3 de Viatodos – a minha escola. Para encerrar o ciclo dedicado ao livro e à leitura – Semana da Leitura –, profusamente ilustrado com palestras, encontros com escritores, feira do livro e testemunhos poéticos, decidiu-se juntar um grupo de pessoas que assegurasse, como franja comum, um só requisito: o gosto pela poesia.
Surpresa (ou talvez não), acorreram a este evento cerca de cinco dezenas de professores, alunos, pais e encarregados de educação, para lá de gente sem vínculo directo à escola, que, em roda, invocaram nomes grandes e anónimos da poesia do mundo. A acompanhar as palavras dedilhadas pela orquestra dos lábios, o chá, que, escorrendo pelas gargantas, ajudava a invocar Pessoa, Garrett, Nuno Júdice, Sousa Braga, para além de jovens que, em exercícios poéticos experimentais, iam, na sua inocência, clamando a verdade maior de todas: a de que é na/pela palavra que se dá sentido à existência humana.
A dar colorido à sessão, tivemos o actor Armindo Cerqueira que declamou, representou e encantou, ora ao som da guitarra domada pelo também poeta Flávio Silva, ora nas notas enfeitiçadas pelos dedos frágeis de petizes de 10/11 anos.
No final, nos olhares seguros e luminosos de todos bailava uma só certeza: a de que homenageando a poesia, se havia homenageado o próprio Homem e a sua realização maior. É que “quem ama, tem o seu deus em dia” (verso retirado de um poema de Flávio Silva).
Os dois poemas por mim escolhidos para declamação:
ATÉ AO FIM
Mas é assim o poema: construído devagar,
palavra a palavra, e mesmo verso a verso,
até ao fim. O que não sei é
como acabá-lo; ou, até, se
o poema quer acabar. Então, peço-te ajuda:
puxo o teu corpo
para o meio dele, deito-o na cama
da estrofe, dispo-o de frases
e de adjectivos até te ver,
tu,
o mais nu dos pronomes. Ficamos
assim. Para trás, palavras e versos,
e tudo o que
não é preciso dizer:
eu e tu, chamando o amor
para que o poema acabe.
Nuno Júdice
PAIXÃO
Podia escrever o teu nome num vidro embaciado ou segredá-lo a uma borboleta negra.
Podia cortar os pulsos e deixar o sangue correr até que o mar ficasse vermelho.
Ou beijar-te os pés. Mas esse gesto está reservado desde o princípio dos séculos e teria o sabor de uma profanação.
Jorge Sousa Braga